O Simbolismo do Rei Leão

Carlos Rabello
8 min readAug 19, 2019

Mufasa e Scar representam valências opostas do símbolo do leão.

O leão representa o poder e a majestade. Mas pode ser manifestar tanto como poder protetor, benevolente e justo, ou pode ser o poder destruidor, malicioso e corrupto.

Mufasa é a luz e o arquétipo do rei Sábio, protetor e benevolente que governa para o bem comum; Scar é a sombra e o arquétipo do rei tirânico, opressor, malicioso e vaidoso.

Mufasa ocupa a posição de rei com um senso de dever. “Há muito o que um rei tem de fazer para além da sua vontade”, diz ele a Simba. O que o move e o motiva a ser rei é cumprir o dever implicado no papel. Ou seja, preservar o equilíbrio entre todas as coisas e proteger o ciclo da vida: “tudo o que você vê faz parte de um delicado equilíbrio. Como rei você tem que entender esse equilíbrio e respeitar todos os animais (…) esse é o ciclo da vida.” Scar significa cicatriz, e o próprio personagem é apresentado com uma cicatriz no rosto. Seu nome simboliza que ele é alguém que já foi ferido pela vida, está doído e machucado. E efetivamente é das nossas dores e cicatrizes que emergem os nossos rancores e ressentimentos. São esses sentimentos que movem a nossa inteligência para as queixas, a astúcia rancorosa e seus atos de corrupção. E é por isso que Scar representa também a perversão do intelecto: uma inteligência maliciosa voltada para manipular e destruir.

A contraposição que existe entre Mufasa e Scar também está presente na geografia do filme.

Há o reino da luz: “Olhe só, Simba, tudo isso que o sol toca é o nosso reino”; e o reino das sombras: “Aquele lugar escuro fica além de nossa fronteira. Jamais deve ir lá, Simba.” As terras do rei representam o império da ordem. É o lugar em que se luta para manter o equilíbrio delicado que existe entre todas as coisas. Isso produz uma exuberância e uma pujança de formas de vida representada na sua diversidade de animais exibidos no inicio do filme, convergindo para a pedra do rei — lugar que representa o centro da alma, de onde a inteligência exerce o seu governo sobre todas as áreas da vida.

Já a zona sombria é o cemitério dos elefantes, não há pujança, exuberância ou vida. Trata-se de um símbolo de morte. Um lugar em que não se respeita o equilíbrio entre as coisas e não se busca preservar o ciclo da vida. É o império do caos e terra das hienas, criaturas cujos apetites nunca se satisfazem. Animais egoístas que caçam e matam até os recursos se esgotarem. Não se preocupam com as consequências exteriores das suas ações — o que as move é apenas satisfação subjetiva e egoísta.

Elas representam os nossos impulsos mais baixos que residem na obscuridade da nossa animalidade. Impulsos insaciáveis que, se deixados livres, levam a um lugar de desolamento devastação e morte.

Às vezes elas saem das sombras para caçar algo no reino da luz, mas os leões empurram elas de volta para as sombras. Se forem deixadas livres, destroem todo o ciclo da vida.

Mas ao mesmo tempo tem seu lugar. Elas não existem para serem eliminadas. Seu destino é viver numa constante tensão com os leões.

A aliança de Scar com as hienas é uma aliança do intelecto pervertido com os impulsos mais baixos, para deixa-los correr livremente e se satisfazerem inconsequentemente. Por isso seu reino rompe o ciclo da vida e as terras se tornam devastadas e depredadas.

A jornada de Simba é a jornada da indivíduo para realizar seu ideal de nobreza. Mas nesse trajeto ele vive dois momentos descritos pelo psicólogo Paul Diel como “exaltação imaginativa” e “banalização”.

Para o jovem Simba, o pai representa o ideal que ele almeja tornar-se, incluindo aí tanto a posição que ele irá ocupar um dia, como o tipo de pessoa que deverá ser.

Segundo Paul Diel, o ideal, geralmente representado na imagem do Divino ou da Divindade, é o que norteia todos os nossos esforços para a realização das qualidades superiores do homem.

Mufasa tem consciência disso e busca tanto ensiná-lo os deveres e responsabilidades do papel de rei, como educá-lo para que ele se torne o tipo de pessoa capaz de exercer esse papel adequadamente.

A cena musical de Simba e a aventura pelo cemitério dos elefantes revelam muito do seu estado interno. Ele está vivendo uma exaltação imaginativa: imaginando já ter as qualidades do ideal a que almeja, ele acha que já pode fazer tudo o que é possível a esse ideal fazer. Mas o mundo não cede, como ele esperava, aos seus encantos. Afinal, ele é só um filhotinho que pode virar lanche de hiena.

Depois de resgatar Simba, Mufasa lhe mostra o céu estrelado. O céu representa a morada superior onde residem os ideais. Olhar para o céu é, portanto, buscar esses ideais para se orientar por eles. E é olhando para o céu que Simba irá reencontrar o pai mais tarde na narrativa.

Scar, se aproveitando da imaginação exaltada de Simba faz com que ele se coloque em uma situação de perigo para poder envolver Mufasa no seu resgate e matá-lo em meio ao caos. Então, Scar faz Simba acreditar que ele é o responsável absoluto pela morte do pai, já que “se não fosse por você, ele ainda estaria vivo.” Simba acredita na mentira de que ele tem responsabilidade absoluta e isso faz com que ele fique com uma grande culpa que o enche de vergonha e dor.

O indivíduo exaltado, atiçado pela vaidade que sussurra em seus ouvidos, produz inúmeras consequências desastrosas com os seus comportamentos. Logo, ou as suas frustrações se acumulam a um nível insuportável ou algo de catastrófico realmente acaba acontecendo.

O que veremos como consequência disso é que Simba irá abandonar os seus ideais e abraçar o hakuna matata: o esquecimento de todos os problemas para viver uma vida de diversão e frivolidade. Essa é a banalização.

Depois de falhar de maneira tão dura na sua tentativa de estar à altura do seu ideal e provocar um desastre tão grande, Simba é resgatado pelos hippies Timão e Pumba, que lhe ensinam o hakuna matata. Essa “filosofia” propõe viver “sem preocupações pelo resto dos seus dias”: uma vida sem ideais que exijam dele que evolua e se torne alguém melhor.

Isso é o que Paul Diel chama de banalização.

O sujeito banalizado só tem interesses materiais imediatos, seja para a subsistência econômica (carreirismo), seja para gozar os prazeres sensoriais (hedonismo). Ao fazer isso ele pensa que na verdade é realista, quando na verdade é apenas materialista e cínico.

Há uma cena emblemática nesse sentido na qual Simba, Timão e Pumba estão olhando para o céu estrelado e Simba expõe para eles o que havia aprendido de seu pai sobre o significado do céu noturno, e eles riem e debocham disso.

Isso é o que acontece quando se compartilha ideais elevados com pessoas que participam de uma vida de banalização. Eles desprezam os ideais e riem deles.

De certa forma, Simba está vivendo assim para evitar o confronto com a sua história e a grande vergonha e culpa que carrega.

Então o destino leva duas pessoas ao seu encontro

Nala, sua amiga de infância, havia sido prometida para se casar com ele quando se tornassem adultos. Surge uma faísca de amor entre eles, mas Nala se mostra decepcionada com o que ele se tornou. E ele descobre que se tornou insuficiente.

Em seguida há encontro com Rafiki. O macaco xamã representa a pessoa que, em contato com o Espírito, sabe orientar uma alma para se confrontar com aquela que é a questão relevante da sua vida (um sacerdote, um terapeuta, um professor…) Rafiki leva Simba a se confrontar consigo mesmo e ver em si a imagem e a herança do pai. A partir disso ele olha novamente para o céu e redescobre ali os ideais que ele um dia abandonou: “você é mais do que o que você se tornou. Você precisa tomar seu lugar no ciclo da vida.” Assim, ele resgata, juntamente com esses ideais, os deveres e exigências que ele acarreta.

Agora ele está pronto para voltar à pedra do Rei e confrontar sua vergonha, sua culpa e seus medos.

Curiosamente, Simba ficou afastado do seu lugar por acreditar na mentira de Scar de que era ele o responsável pela morte do pai. “Se não fosse por você, ele ainda estaria vivo.” Essa culpa o envergonhava e enchia de dor, e ele procurou esquecer e abandonar sua história.

É muito engenhoso o modo como Scar planta a culpa em Simba. Porque a frase considerada em si mesma e isoladamente é verdadeira. Só que essa é apenas parte da história. A verdade completa, nós sabemos, é que é Scar quem arma toda a situação e mata Mufasa.

É exatamente assim que a inteligência maliciosa opera para plantar uma culpa. Ela não precisa mentir inventando fatos que não ocorreram. A “melhor” mentira é aquela que se usa da verdade para criar uma impressão: tirando um fato de contexto, ampliando-o, etc., fazendo com que pareçamos muito piores do que realmente somos, terminando por destruir nosso brio e esvaziando de ânimo nosso coração.

No confronto, Scar usa da culpa outrora plantada para deslegitimar Simba perante a alcatéia e fazê-lo hesitar. Ele consegue encurralar Simba na ponta da pedra, que fica pendurado a ponto de cair. Isso corresponde àquelas situações em que, ao se confrontar com uma questão vital, sentimos que nossa vida está por um fio. E é nesse momento que ele descobre a verdade. Scar lhe conta: foi ele quem matou Mufasa.

A descoberta da verdade sobre a sua existência faz com que Simba se liberte da vergonha e da culpa e recobre completamente suas forças. Toda a sua postura que antes era hesitante e pusilânime, agora tinha realmente a força e a pujança de um leão.

Isso é o que acontece quando conseguimos desvelar uma mentira ou um engano essencial sobre a nossa própria biografia. Isso tem o poder de reestruturar completamente a nossa personalidade. Desbloqueando mananciais de força e vitalidade que sequer sabíamos possuir.

Simba vence Scar e reassume o seu lugar de rei.

O destino de Scar é o destino de todos que governam a sua vida pelo ressentimento e pela vaidade.

Ele termina consumido pelos impulsos destrutivos e insaciáveis que liberou.

Por fim, assistimos o batizado do filho de Simba e Nala.

A ordem foi restaurada.

E assim continua o ciclo da vida.

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