Carlos Rabello
4 min readOct 28, 2019

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Serotonina e o Desencantamento Moderno

Poucas imagens são tão emblemáticas acerca do caráter do homem moderno, quanto a vida do protagonista de Serotonina, de Michel Houellebecq.

Florence Claude é um agrônomo cuja especialidade consiste em fazer leituras e avaliações do cenário econômico envolvendo a complexa agricultura francesa, trabalho no qual era perito. É um sujeito de grande capacidade cognitiva e racional.

Todavia, depois de tomar conhecimento da infidelidade da sua última parceira, e do caráter grotesco por meio da qual se dava essa infidelidade, Claude fica completamente arrasado e deprimido. Sem necessariamente perceber a relação entre a sua depressão e a sua descoberta, ele abandona a sua vida antiga e começa a tomar um antidepressivo que o mantém vivo, mas desprovido de qualquer libido. Sua sexualidade está anulada. Ele começa então a passar a vida em revisão, revisitando cenários e pessoas da sua história: seus amores e seu único amigo.

O conflito que nos mantém engajados com o desenrolar da trama é descobrir:

o que resultará dessa “revisão da própria vida”?

e o que acontecerá com Claude, ele vai sobreviver ou vai se matar?

Um fato curioso e emblemático acerca de Claude é que grande parte do seu pensamento deriva da compreensão racional que ele possui acerca das estruturas e processos de funcionamento econômico do mundo.

Além disso, a narrativa é bastante forte nas caracterizações e descrições de personagens e cenários. Nessas descrições reconhecemos o mundo em que vivemos, e nesse sentido o livro é iluminador. É como se pela primeira vez uma voz desse inteligibilidade aquilo que se põe diante dos nossos olhos.

Outro aspecto interessante desse personagem é que ele é totalmente pautado pelos ideais da sua geração, que ele nunca questiona e contra os quais ele nunca se opõe. Para ele, os ditames da modernidade pairam sobre o mundo das coisas e sobre as estruturas e processos econômicos, como “Imperativos”, orientando totalmente o curso das coisas e como elas devem ser.

Trata-se de um homem comum, moderno, educado e inteligente em busca da felicidade. Um homem comum que habita essa visão de “desencantamento do mundo”, como dizia Max Weber, e é a partir dessas premissas civilizacionais que ele vive e faz suas escolhas. O resultado não poderiam ser mais trágico:

“Ninguém mais vai ser feliz no Ocidente, (…) nunca mais, hoje em dia devemos considerar a felicidade como um sonho antigo; pura e simplesmente não há condições históricas.”

A única coisa que o poderia redimi-lo e trazer alguma felicidade à sua vida seria o amor.

“O mundo externo era duro, implacável com os fracos, nunca cumpria suas promessas, e o amor continuava sendo a única coisa em que ainda se podia, talvez, ter fé.”

Mas os “imperativos modernos” não lhe permitiram:

“Poderia ter lhe proposto (…), que se tornasse minha mulher, e hoje em dia quando penso nisso (e penso sem parar), acho que ela teria concordado. (…) Mas não propus, e com certeza não poderia propor, eu não tinha sido formatado para essas coisas, não fazia parte do meu software, eu era um homem moderno, e para mim, assim como para todos os meus contemporâneos, a carreira profissional das mulheres era algo que devia ser respeitado acima de tudo, era esse o critério absoluto, a superação da barbárie, a saída da idade média.”

Mas o que o leva a arruinar a sua salvação pelo amor é precisamente a tentação de viver aventuras sexuais. É a compulsão sexual que destrói os seus relacionamentos desde dentro, e que o destrói desde fora no seu último relacionamento. Nosso personagem não resiste a essas tentações. Ele se deixa levar; o que aliás caracteriza muito, segundo suas próprias palavras, o modo como ele lida com toda a sua vida.

Uma das cenas mais emblemáticos do livro é quando Claude usa a fórmula de Newton para calcular quanto tempo levaria para o seu próprio corpo cair do décimo quinto andar do prédio e se espatifar no chão.

Esse é o ambiente mental que a modernidade criou para os seres humanos viverem no século XXI: o desolamento total de habitar um mundo cujo mecanismo de funcionamento é racionalmente compreensível através de fórmulas científicas sofisticadas, mas é completamente desprovido de sentido. Um mundo que ainda oferece esperança de felicidade no amor, mas que cada vez mais afasta dele as pessoas devido a liberação sexual e pelo modo como problematizou e problematiza as relações humanas.

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