Carlos Rabello
6 min readJul 25, 2020

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Uma civilização de idiotas

O grande problema da nossa época é a idiotice disseminada e endêmica. O idiota por definição é o sujeito fechado nele mesmo: nos seus interesses e no pequeno círculo imediato das coisas que lhe dizem respeito. O traço que caracteriza o idiota é a sua desatenção. O idiota está constantemente desatento às pessoas ao seu redor, aos movimentos e necessidades que não lhe digam respeito de modo imediato.

Podemos observar esse tipo de atitude vezes sem conta com um simples passeio na rua.

Um dia estava levando meu filho, que na ocasião tinha 3 anos de idade, para a escola em um carrinho de bebê.

Estava andando pela calçada e passei por uma passagem estreita em meio a dois canteiros com plantas, próximo à saída estava uma senhora que saiu para passear com seu cachorro. À medida que me aproximei, ela não fez qualquer menção de se mexer. Parece que só quando cheguei bem perto e lhe dirigi a palavra pedindo licença foi que ela, tomou consciência que havia alguém ali além dela mesma e, incomodada, me disse para dar a volta porque ela não ia sair da frente, e eu o fiz, com revolta e sob protesto. Fiquei absolutamente espantado com a total falta de consciência da mulher. Nada poderia ser mais idiota do que aquela atitude.

Muitas vezes não encontramos pessoas grosseiras a esse ponto, mas ainda assim idiotas, isto é, gravemente desatentas ao que se passa em torno delas.

Quantas vezes não presenciei pessoas que dirigem na faixa esquerda, sem se importar de estar abaixo da velocidade da pista e sem se importar que outras pessoas possam querer passar mais rápido pela faixa da esquerda.

Pessoas que ocupam lugar na calçada sem dar passagem às outras, pessoas que vão andar de bicicleta e não atentam para outros veículos que estão dividindo com elas a faixa de bicicletas ou de carros.

Os sinais da idiotice, de uma consciência desatenta e fechada em si mesma, aparecem na educação dos pais, quando se preocupam apenas em cumprir algumas obrigações de modo quase burocrático, mas estão desatentos às necessidades e tendências dos filhos que estão evidentemente na sua cara, apenas para descobrir, anos mais tarde, que o filho foi por algum caminho infeliz, ou que a sua relação com eles se tornou fria e distante. O mais triste disso tudo é que a pessoa “didn’t see it coming”. Não percebe que o que aconteceu depois – a situação em que se encontra atualmente – foi apenas a consequência de como os acontecimentos se desdobraram desde lá de trás.

Uma coisa que me chamou muito a atenção, mais do que os baixos níveis de pontuação do Brasil no exames internacionais de educação (PISA), foram a taxas de confiança entre as pessoas no Brasil. O Brasil pontua baixíssimo nesse índice. A maioria das pessoas no nosso país não confia umas nas outras; e a sensação que todos temos, das pessoas ao nosso redor, é que estamos cercados de estranhos indiferentes e frequentemente hostis a nós. Qualquer atenção que prestemos ao mundo do nosso redor é frequentemente no sentido de nos protegermos. Mas nunca de atentar às necessidades e favorecer os movimentos que observamos.

A idiotice se faz evidente em coisas simples. Esses dias estava andando de bicicleta em uma ciclovia e tive que tomar cuidado porque diversas vezes as pessoas paravam suas bicicletas no meio da pista de velocidade, sem ir para o canto ou para a calçada, Sem olhar antes se havia alguém vindo. É a pessoa desatenta, fechada nela mesma e no que ela precisa fazer: aquele sujeito que vai e faz, sem olhar em volta. Vi pessoas parando suas bicicletas para atravessar a rua e ficando com as bicicletas atravessadas no meio da pista, obstruindo o caminho para quem quer que viesse por ali.

Idiotas.

Isso aparece em casa, quando você toma suas decisões independentemente do impacto e das consequências geradas para os seus familiares.

Isso aparece quando você lava as roupas para o seu filho adolescente e ele fica sem a noção de que as roupas não se lavam sozinhas e magicamente aparecem dobradas na gaveta.

A síndrome da idiotice se perpetua quando o seu filho lhe pede um animal de estimação, um gato ou um cachorro, e você o dá, mas você não lhe ensina que o cachorro tem suas necessidades e que para ser dono de um animal, ele precisará cuidar do animal: limpar seus resíduos, alimentá-lo e levá-lo para passear. E quando, depois da empolgação das primeiras semanas, ele se esquece de cuidar do animal e você assume fazer isso pra ele, você está ajudando-o a ser um idiota: uma pessoa fechada nela mesma e desatenta às necessidades e movimentos de outros no seu entorno.

Por outro lado, Caso você lhe dê o cachorro, mas negligencie ensinar a ele como cuidar do cachorro, até ele ser capaz de cuidar de maneira autônoma, e monitore isso durante um tempo até se assegurar que ele realmente aprendeu, então é você quem está sendo idiota: fechado em si mesmo e desatento às necessidades dele, você não presta atenção às necessidades que a situação está colocando diante de você. Tudo o que você faz é depois reclamar dele: porque no fim das contas ele pediu um cachorro mas não cuidou do cachorro.

A idiotice aparece quando alguém põe o som no último volume, sem se importar se isso irá afetar ou incomodar as pessoas em volta.

A idiotice é a característica mais grave da nossa sociedade atualmente. E, curiosamente, é uma fator do qual as pessoas estão totalmente inconscientes, embora também não seja nenhuma surpresa que uma pessoa desatenta não perceba a raiz do seu problema.

A idiotice é um problema com consequências no âmbito das relações pessoais e de ordem cívica, na relação com as pessoas da sociedade mais ampla ao seu redor.

Sua característica típica, seu traço distintivo, é a desatenção endêmica. A pessoa fechada nela mesma e desatenta às necessidades e movimentos dos outros ao nosso redor.

Não há movimento social, político ou até mesmo intelectual que irá vingar ou trazer benefícios de ordem mais ampla e abrangente enquanto nós, enquanto indivíduos, não rompermos a carapaça da idiotice e começarmos a prestar atenção.

Não há instrução ou vida intelectual ou desenvolvimento de “competências e habilidades”, nem mesmo habilidades cognitivas, que compense a desatenção.

Não me entenda mal: estudar e aprender são empreendimentos nobres, mas pouco farão por uma consciência que no seu cerne é desatenta.

Prestar atenção e ter consciência é aquilo que nos humaniza e que nos torna vivos.

A tendência é que, para um desatento, qualquer estudo ou instrução se torne uma atividade alienante e fechada na ordem das abstrações e fantasias.

O lugar onde aprendi sobre isso foi na minha escola de artes marciais. Assim como você eu nasci gravemente contaminado de idiotice e ainda tenho que fazer uma boa dose de esforço para superá-la. No âmbito do aprendizado marcial, da minha relação com meu mestre e outros discípulos eu aprendi que deveria estar atento às situações em que me encontro: se estou no restaurante com meu professor e estamos comendo, eu estou atento ao seu copo de chá. Se o copo esvazia, eu me preocupo em enchê-lo. É uma prática, antes de mais nada, da atenção constante. Se o meu professor vai ministrar uma sessão, eu me preocupo como posso ser útil para auxiliá-lo, ou para favorecer que a sessão aconteça sem que eu atrapalhe, no caso de não poder ajudar.

É tudo uma questão de estar atento às necessidades e aos movimentos em torno, e de favorecer o que puder ser favorecido.

Esse convívio e essa dinâmica foi aos poucos se colocando para mim como algo que contrastava fortemente com outros âmbitos de estudo que eu frequentava, onde as pessoas se instruíam ou treinavam alguma habilidade, mas estavam totalmente alheias a necessidades e movimentos óbvios que estavam na frente delas. É como se o estudo e a instrução se tornassem meros ornamentos, e não favorecesse em nada que elas se tornassem pessoas melhores; e não tornam mesmo. A atenção é a base de quem nós somos. Se somos desatentos, somos desconectados das pessoas e do mundo. Somos inconsistentes e alienados.

A boa notícia a respeito disso é que tendo identificado o problema gerado pela falta de atenção endêmica, o seu remédio é relativamente simples: cultivar a atenção. E você pode começar a praticar isso de maneira muito imediata. Olhe ao seu redor, para as pessoas do seu convívio mais imediato. Quais são as necessidades delas? Quais as necessidades e as tendências das situações que se apresentam pra você e nas quais você já se encontra agora? O que você pode fazer para favorecê-las? Se você tem essa postura diante da vida, seus esforços de educação e desenvolvimento tenderão a se espalhar.

Caso não tenha, ficará tudo fechado em você mesmo, exatamente como já estava.

Não seja um idiota fechado em si mesmo e desatento ao que se passa ao seu redor.

Esteja atento às situações, às necessidades e aos movimentos das pessoas ao seu redor.

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